Budismo

 
A vida do Buda

 

Siddhartha Gautama nasceu para uma vida de privilégios; Shuddhodana, o seu pai, era um homem rico e poderoso, e Mayadevi, a sua mãe, era uma mulher refinada. Ao nascer, Asita, um vidente predisse que o menino estava destinado a um império, fosse político, fosse espiritual, e sem dúvida que os pais acharam o augúrio apropriado para o seu rebento. Talvez tenha sido por esta razão que escolheram o seu nome próprio: Sarvarthasiddha, “aquele que atingiu todos os objetivos”, ou Siddhartha, “aquele que realizou o seu objetivo”. A sua mãe morreu pouco tempo depois do nascimento do filho, tendo sido criado por sua tia, Mahaprajapati. Embora preocupado com a educação apropriada a um jovem da sua posição, a sua juventude caracterizou-se por deleite e prazeres, uma vez que o seu pai desejava que o seu formoso filho tivesse o maior apego às vantagens da riqueza e do poder, a fim de vir a optar pela vida do império político. Ao atingir a idade de 16 anos foi-lhe atribuída por esposa, a jovem Yashodhara.

 

Contudo, os planos de seu pai não viriam a ser satisfeitos, uma vez que foi por essa altura de sua vida que o jovem dera início a uma exploração física e intelectual do seu meio ambiente que viria a ter vastas consequências. Este período da sua história está expresso ou simbolizado pelo episódio das “quatro visões”, quatro experiências formativas que o jovem viveu quando viajava em sua carruagem. Começou pelo aparecimento de um velho à beira da estrada, que fez com que pela primeira vez Siddhartha tivesse verdadeiramente compreendido o fato da inevitabilidade do envelhecimento, a que se seguiram confrontações equivalentes com a doença e a morte. Abalado por estas “visões” da condição humana, a complacência da sua vida de privilégio ficou perturbada e veio a reconhecer que tais condições dolorosas e humilhantes lhe estavam reservadas, assim como à sua bela esposa, tão seguramente como estavam reservadas a todas as outras criaturas.

 

A quarta visão, o encontro com um caminhante, um parivrajaka, plantou no seu espírito a semente que fez com que ponderasse sobre a situação durante os meses seguintes, vindo a crescer e a se tornar a convicção de que existia uma alternativa à aceitação passiva do sofrimento e da decadência, mas que esta procura exigiria uma ação não só radical como também dolorosa.

 

O acontecimento final que parece ter feito com que a balança da decisão pendesse para o lado da procura da liberdade de explorar a “Nobre Busca” que o conduziria ao império espiritual profetizado por Asita, foi o nascimento de um filho a Yashodhara. Foi a frustração de ver o nascimento do seu filho como o nascimento de um impedimento.

 

A sua reação a este acontecimento tornar-se-ia decisiva. Sem a aprovação nem mesmo o conhecimento de seus pais, partiu de casa deixando mulher e filho, família e status social, prazeres e privilégios. Com 29 anos de idade cortou os cabelos, vestiu-se com as roupas de mendigo e deu início à sua procura da verdade e da libertação.

 

O seu primeiro pensamento foi o de procurar um professor viajando para o Sul, em direção a Rajagrha, onde se encontrou com Bimbisara, o rei de Magadha – período este descrito de modo comovente no antigo poema, o Sutra Pabbajja do Sutra Nipata. Encontrou o seu primeiro professor – Alara Kalama –, que lhe ensinou uma forma de meditação que levava a um estado exaltado de absorção, tecnicamente designado por akimchanyayatana, a “esfera ou estado de não-objetificação”.

 

Contudo, tendo se igualado ao nível de seu mestre, Siddhartha reconheceu que um tal estado, carente de dimensão moral e cognitiva, não operava uma diferença radical na sua condição humana, continuando sujeito a envelhecimento, doença e morte: a sua busca não terminara ali.

 

Apesar de Alara Kalama se ter oferecido para partilhar com ele a orientação dos próprios discípulos, Siddhartha partiu em busca de nova orientação. Processo semelhante repetiu-se com o professor seguinte – Udraka Ramaputra –, que o instruiu na realização de uma absorção meditativa designada por naivasamjnanasamjnayatana, “o estado ou esfera da nem percepção nem não percepção”, e que acabou por lhe oferecer também a condução exclusiva de seus discípulos. De novo, não sendo isto o que Siddhartha procurava, dedicou-se depois à causa do ascetismo, na esperança de que isso o levasse à resolução da sua busca. Durante cinco ou seis anos viveu em Uruvilva, junto ao rio Nairanjana, na companhia de cinco outros ascetas, primeiro companheiros e depois seus discípulos. Levou a autotortura a extremos sem precedentes, retendo a respiração durante longos períodos, e mais tarde reduzindo a ingestão de alimentos. A história desta fase da sua procura é contada no Sutra Mahasaccaka.

 

Tendo posto a sua vida em perigo devido à obstinada opção ascética, Siddhartha de novo rejeita a sua realização, desta vez por ser perigosa e, em última instância, desnecessária. Voltou a alimentar-se moderadamente, pelo que foi rejeitado pelos seus discípulos ascetas, que por isso o abandonaram e se dirigiram para o Parque das Gazelas em Rshipatana, próximo da atual Benares. Num espírito de profunda resolução, sentou-se debaixo de uma árvore na margem do Nairanjana, onde recordou uma natural e não deliberada experiência de dhyana, meditação absorta que lhe havia ocorrido na sua juventude quando estava sentado sob uma árvore jambo; tomando esta opção como indicativa de uma atitude mais equilibrada e harmoniosa da sua procura, durante a noite, através da contemplação do mistério da morte e do renascimento, acabou por alcançar uma nova e profunda intuição da natureza da nossa condição, e do modo como as coisas são realmente. Esta foi a sua iluminação, o seu “despertar” para o modo como as coisas são realmente (yathabhuta), razão pela qual é chamado de Buda, “aquele que despertou”. Tinha então 35 anos.

 

O resto de sua vida, durou mais 45 anos e a levou num peregrinar constante através das regiões do Norte da Índia, até às cidades da bacia central do Ganges. Imediatamente após a sua Iluminação, passou várias semanas na vizinhança da Árvore Bodhi (um lugar que ficou conhecido pelo nome de Bodh Gaya), absorvendo e assimilando o impacto da sua transformadora intuição. Teve algumas dúvidas acerca do valor da tentativa de comunicar isso a outros, mas foi Brahma, ou alta divindade, chamada Sahampati quem lhe suplicou que o fizesse para benefício daqueles que poderiam ser capazes de compreender a sua mensagem. Em primeiro lugar pensou nos seus antigos professores, Alara Kalama e Udraka Ramaputra, mas ao tomar conhecimento de que já tinham morrido, lembrou-se dos seus companheiros ascetas que o tinham abandonado com aversão, os quais foi procurar em Rshipatana (atual Sarnath). Aí ensinou no Parque das Gazelas, cerca de nove quilômetros a norte da cidade principal, e, por um processo lento, prolongado devido à inicial relutância deles em receber os seus ensinamentos, levou esses cinco antigos discípulos à mesma intuição que ele próprio tivera em Bodh Gaya.

 

Após esta realização penosamente alcançada, o seu ensinamento viu-se gratificado pela bem sucedida instrução de outros tantos 55 jovens; exortou então este grupo inicial de 60 realizados a vaguearem, cada um por si próprio, pelas estradas e caminhos do país, ensinando esta mesma intuição do modo como as coisas são para benefício de muitos (bahujanahitaya). O Buda continuou a ensinar por um período de 45 anos. A sua Sanga, a comunidade dos seus discípulos, cresceu rapidamente, e apesar de claramente apreciar os prazeres da solidão, os sutras sugerem que passou grande parte do seu tempo em centros urbanos tais como Rajagrha, Vaishali e Shravasti, onde teria a oportunidade de contatar com um maior número de pessoas. Parece, de fato, que passou as estações das chuvas dos últimos 25 anos de sua vida em Shravasti, a capital de Koshala, uma grande e rica cidade no cruzamento de duas das maiores rotas de comércio, onde um importante discípulo laico chamado Anathapindika tinha doado um agradável parque ou bosque para uso do Buda e dos seus discípulos.

 

Com a idade de 80 anos, o Buda adoeceu gravemente em Vaishali, e decidiu que iria morrer ou entrar no seu parinirvana ao fim de três meses. A causa imediata da morte foi uma refeição de cogumelos venenosos (a que tudo indica) oferecida por um ferreiro chamado Chunda, e que lhe provocou uma disenteria. Faleceu no meio de um bosque de árvores sala em Kushinagara. As suas derradeiras palavras foram “vayadhamma samkhara, appamadena sampadetha” (“Todas as coisas compostas estão sujeitas a degradarem-se; procurem manter a consciência em alerta.”).

 

Sete dias depois, os seus restos mortais foram cremados e as relíquias desta cremação distribuídas pelos governantes locais para serem conservadas em dez (alguns dizem oito) stupas ou relicários.

 

 

Texto adaptado para o português do Brasil, extraído do livro
Breve História do Budismo, Andrew Skilton, Editorial Presença, 1ª edição, Lisboa, julho, 2000.

 

As letras “Ś” e “C” das palavras sânscritas foram grafadas com “Sh” e “Ch” para melhor pronunciá-las em português.