Tenho sobre o Darma uma certeza absoluta: ele é para as pessoas. Os ensinamentos do Buda não são um mero sistema filosófico para recolocar em ordem os conceitos que estão em nossa cabeça, mas um ato vivo de compaixão para nos mostrar como abrir o coração ao milagre da consciência – a nossa consciência em meio à consciência dos demais.
Aprendi essa verdade da forma como todos devem aprendê-la: vivendo a vida e aplicando os ensinamentos do Buda àquilo que eu experienciava. Espero que, ao descrever algumas dessas minhas experiências, consiga auxiliar os leitores a compreender minha abordagem do Darma e minha profunda certeza de que ele deve ser praticado com as pessoas, em meio a elas e para elas.
Nasci na China, num vilarejo da província de Jiangsu, em 1927. Como a maioria das pessoas da época e do lugar, minha família professava uma mistura de crenças religiosas, acreditando tanto em deuses e espíritos como nos ensinamentos do Buda. Não havia separação clara entre as diferentes crenças, mas uma coisa era certa: a religião era uma parte muito importante da vida de todos. Assim, aos três ou quatro anos, eu já havia absorvido a profunda convicção religiosa da classe camponesa da China.
Minha infância foi passada, em grande parte, na casa da minha avó materna. Por motivos religiosos, ela era vegetariana desde os 18 anos. Casou-se com meu avô e manteve essa prática, além de adotar outras. Despertava muito cedo todas as manhãs para recitar um sutra budista. Embora ela não fosse capaz de ler uma única palavra, ela conhecia de cor o Sutra Amitabha e o Sutra Vajracchedika-prajñaparamita (Sutra Diamante), entre outros.
A recitação dos sutras proporcionou-lhe poderosas experiências religiosas, interpretadas por ela como o desenvolvimento de superpoderes, o que a levou a redobrar seu empenho: passou a levantar-se ainda mais cedo e a meditar por mais tempo. Ainda me lembro dela, saindo da cama antes do raiar do Sol para meditar. Não sei onde ela havia aprendido um exercício de ioga que fazia seu estômago roncar. O barulho era tão alto que chegava a me acordar, arrancando-me dos sonhos.
Uma vez perguntei: “Vovó, por que sua barriga faz tanto barulho?”.
E ela respondeu: “É o meu kung-fu, resultado de anos de prática”.
À medida que fui crescendo, tive contato com muitas outras formas de religiosidade popular, incluindo reuniões mediúnicas, transes, “viagens espirituais”, fenômenos de clarividência etc.
Fui para o monastério com 12 anos. Naquele momento, meu mundo mudou. Deixei de ser uma criança despreocupada e tornei-me um disciplinado estudante do Darma. Sete ou oito anos de estudos se passaram antes que eu pudesse voltar à minha vila para visitar a família. A guerra com o Japão (1937-1945) já havia ter minado. Encontrei minha avó sentada embaixo de uma árvore, costurando. Ajoelhei-me a seu lado e, de repente, pensei: durante todo aquele tempo no monastério, eu nunca tinha ouvido falar de uma técnica de meditação que fizesse o estômago roncar. Julguei a oportunidade excelente para ensinar-lhe algo mais a respeito do Darma.
Vovó, sua barriga ainda faz aquele barulho quando a senhora medita?”, perguntei.
Com a pura sinceridade das velhas senhoras, ela me respondeu: “É claro que sim. Como poderia viver sem aquele kung-fu?”.
Repliquei então: “Mas qual a utilidade disso? Carros e aviões também fazem barulho. Uma máquina pode fazer mais barulho que o seu estômago. Provocar o estômago para fazer ruídos não ajuda na elevação moral da raça humana e nem ajuda os seres sencientes a se libertarem do ciclo de nascimento e morte. Conheci muitos grandes mestres nos últimos anos, e nenhum deles faz o estômago roncar durante a meditação”.
Minha avó ficou perplexa. Depois de um longo silêncio, indagou:
“Então, qual é a forma correta de me aperfeiçoar?”.
Respondi: “O cultivo adequado exige que desenvolvamos todo o potencial de nosso caráter através da elevação da natureza moral, em cada oportunidade que se nos apresente. A verdadeira prática espiritual requer que nos observemos de perto para perceber a verdadeira natureza da mente. Nada disso tem a ver com fazer o estômago roncar!”.
Minha avó ficou me olhando por um longo tempo. Sob seus olhos maduros e gentis, minha certeza se desvaneceu. E o pior é que ela havia acredita do em mim! Suas décadas de prática solitária eram o alicerce de sua fé. Talvez fosse mesmo verdade que os roncos de seu estômago não tinham ajudado muito na elevação moral da raça humana, mas também era verdade – e esta era uma verdade muito mais profunda – que seu kung-fu era tudo o que ela tinha. Era tudo para ela.
Em um único instante impensado e com pouquíssimas palavras, levei-a a questionar o alicerce de sua fé. Mal consegui enfrentar a decepção que vi em seus olhos. Eu era jovem e tinha ultrapassado os limites do nosso vilarejo. Portanto, ela acreditou em mim. Continuamos a conversar, mas percebi que eu nada poderia fazer ou dizer para sanar a dor que havia provocado. Até hoje essa lembrança me incomoda.
Pouco tempo depois, a China continental entrou no turbilhão da revolução comunista. Acompanhei uma unidade militar que foi enviada para Taiwan (Ilha de Formosa), pensando logo retornar ao continente, mas, à medida que a revolução avançava e mais soldados nacionalistas batiam em retirada, percebemos que o mais provável era ficarmos em Taiwan por muito tempo. Foi o que aconteceu.
Quando comecei a pregar o Darma em Taiwan, lembrei-me de minha experiência com minha avó. Nunca mais tentei destruir as complexas crenças populares de quem viesse me ouvir. Percebi que esse tipo de convicção religiosa pode servir de introdução às profundas verdades ensinadas pelo Buda. Ninguém consegue compreender o Darma em uma única palestra; portanto, devemos respeitar as crenças dos outros.
Em 1953, mudei-me para Yilan, na costa leste de Taiwan. Logo percebi que, muito provavelmente, eu era o primeiro monge budista a pôr os pés ali para pregar o Darma. Havia na região um templo sempre cheio de fumaça de incenso, que era dedicado à deusa Mazu, protetora dos navegantes. Toda a população da localidade ia lá para reverenciar e adorar. Ninguém tinha a compreensão do budismo, mas todos os fiéis acreditavam que aquela era uma forma de prática budista. E, estando satisfeitos com elas, jamais aceitariam que alguém de fora da comunidade pudesse convencê-los a tentar outra coisa. Muitos missionários cristãos passaram pela região sem conseguir uma conversão sequer.
Com a lembrança da decepção de minha avó ainda fresca na memória, empreendi a tarefa de apresentar os ensinamentos do Buda com muito mais reserva do que teria tido anteriormente. Decidi adotar uma abordagem gradual, considerando cuidadosamente aquilo em que as pessoas já acreditavam. Sabia muito bem que tentar demolir suas crenças de nada adiantaria: esse caminho apenas as levaria a decepcionar-se consigo mesmas ou a rejeitar o Darma e a mim.
Concepções errôneas não são tão boas como concepções corretas, mas, pelo menos por algum tempo, servem para abrandar a impressão de solidão e isolamento dos que são desprovidos de convicções religiosas. Por ter vivido minha juventude no interior da China, aprendi que a religião é importante para o bem-estar da sociedade como um todo. Um olhar nos olhos de minha avó ensinou-me a ver que a religião é essencial a todo e qualquer coração humano.
Todo monge budista estuda o Darma e aprende com tantos professores quanto possível. Eu não fui exceção à regra. Um monge budista geralmente estuda com um mestre principal. Meu orientador foi mestre Zhikai (1911-1981), abade do Monastério Qi Xia Shan, um dos maiores e mais antigos da China. Apesar de ser o abade desse monastério tão importante e famoso em toda a China, ele nunca fez nada para me ajudar: apenas me enviava a outros monastérios para estudar, e, às vezes, anos se passavam sem que eu o visse.
Nas raras ocasiões em que o encontrei, ele nunca me ofereceu a oportunidade de sentar com ele, conversar e fazer perguntas. Ele era como a maioria dos monges de sua geração: tratava os monges mais novos com extrema frieza. Quando não estava aborrecido com algo que eu tivesse feito, mestre Zhikai estava me dando ordens. Jamais me perguntou se eu precisava de alguma coisa ou se havia algo que pudesse fazer para me ajudar. Em dez anos, tudo que ganhei dele foram duas mudas de roupa. E é claro que eu não ousava pedir-lhe dinheiro para comprar roupas. Entretanto, sempre que escrevia para casa, dizia algo como: “O mestre é muito bom para mim. Estou muito feliz aqui. Vocês não precisam se preocupar comigo”.
Nas décadas de 1930 e 1940, a China era um país muito pobre. No monastério onde eu morava, havia mais de quatrocentas pessoas. Nossa comunidade era tão carente que só comíamos arroz integral duas vezes por mês. Em geral, as refeições limitavam-se a um ralo mingau de arroz. O caldo servido no desjejum, de tão ralo, era quase transparente. O pouco de comida servido com o mingau não passava de bagaço de queijo de soja ou tiras de nabo seco. O queijo de soja de verdade era reservado para os visitantes. Das tiras de nabo, frequentemente saíam larvas que rastejavam pela mesa. Visto que nunca tínhamos óleo comestível, o resíduo de queijo de soja que comíamos não era cozido. Havia poucos nutrientes em nossa alimentação; mas, pelo que me lembro, não ficávamos doentes com frequência. A maioria era bem saudável.
A vida monástica nos ensinou a sermos estoicos. Esperavam de nós que fôssemos firmes e capazes de suportar privações. Estoicismo não é a única virtude no mundo, mas acho que é uma das mais úteis no ensino e no aprendizado do Darma. Como poderia conquistar a própria mente alguém que não consegue aguentar as provações do corpo?
Não existe melhor professor do que a vida. Não adoto o método antigo com meus discípulos, mas não me ressinto de ter passado por ele. Depois de alguns anos vivendo daquela maneira, dificilmente alguma coisa consegue nos perturbar.
Aos 15 anos, fui ordenado monge. A cerimônia de ordenação estendeu-se por 53 dias, período que deixou marca indelével em minha mente e foi a fonte de muitos hábitos que até hoje mantenho.
Durante os 53 dias da cerimônia, tínhamos de prestar total atenção àquilo que estávamos fazendo. Nesse período, mal abri os olhos e nem uma vez ousei virar a cabeça para ver o que acontecia ao meu redor. Aos 15 anos, os jovens são curiosos, querem saber de tudo e ver quem está fazendo o quê. Ouvem o som do vento nos campos e querem ir até a janela para ver o que está acontecendo. É a curiosidade natural da juventude. Durante a cerimônia de ordenação, tal comportamento era inadmissível. Se fizéssemos algum movimento, um dos monges coordenadores vinha e nos batia com uma vara, dizendo: ”Garoto, o que você pensa que está fazendo? Feche os ouvidos e deixe de prestar tanta atenção ao que ocorre fora de você!” ou: “Rapaz, não deixe seus olhos serem levados por tudo o que veem! De tudo isso, o que realmente lhe pertence?”.
Lembro-me bem do golpe de vara que me levou a pensar na verdade contida naquelas palavras. De fato, em todo o monastério Qi Xia Shan, não havia um tijolo, uma telha, uma folha sequer que me pertencesse. Aquela lição me tocou profundamente, e até hoje ainda tenho por hábito fechar os olhos e me abstrair do mundo ao meu redor. Nesses momentos, descortinam-se as tranquilas paisagens do mundo interior, e meus olhos e ouvidos preenchem-se com os sons da solidão interna, em vez de com os ruídos da mudança dos fenômenos.
Quando a cerimônia de ordenação estava para ser concluída, pude lançar novamente o olhar ao mundo. Ainda me lembro de que tudo me pareceu vívido e fresco. Montanhas, árvores e flores saltaram à minha mente com uma intensidade nunca antes experimentada.
Existe um ditado que afirma: “Praticar o Darma por um minuto vale mais do que falar dez minutos sobre o Darma”. O texto deste livro destina-se a auxiliar o leitor a penetrar nos significados profundos do ensinamento do Buda Shakyamuni. Não é aqui apresentado como ideias desvinculadas da vida. Aprender o Darma sem praticá-lo seria trágico! Minha esperança é de que todos os que lerem este livro venham a também praticar os ensinamentos nele contidos.
Recitar o nome do Buda ou meditar regularmente assemelha-se a cozinhar. O esforço constante é como a chama sob uma panela de arroz. Se acendermos o fogo e o apagarmos em seguida, não conseguiremos preparar a refeição. Contudo, aplicando a quantidade certa de calor durante o tempo correto, iremos usufruir plenamente dos frutos de nossos esforços. Essa é a sabedoria de milênios de prática budista. Ao concentrar a mente nesses grandiosos ensinamentos, sendo receptivos a eles, as maravilhosas e compassivas energias de planos mais elevados começarão a preencher nossa vida. E com elas aprenderemos o caminho para encontrar a verdade.
A prática budista deve começar por nós mesmos: quem somos, o que somos, o que fazemos. Primeiro, aprendemos a controlar os impulsos negativos do corpo. Isso é moralidade. Em seguida, aprendemos a controlar a mente. Isso é meditação. Enfim, aprendemos a compreender as verdades profundas da vida. Isso é sabedoria. Cada estágio depende do anterior.
Quando eu era jovem, passávamos muitas horas em meditação. Assim como em muitos monastérios chineses, os ensinamentos do Qi Xia Shan eram uma combinação das escolas Terra Pura e Chan. Às vezes, recitávamos o nome do Buda Amitabha; outras, simplesmente meditávamos sobre nossa natureza búdica. Essas duas práticas complementam-se muito bem, uma vez que a primeira ensina a humildade de depender do Buda e a segunda ensina a sabedoria de depender de si próprio.
No monastério, costumávamos meditar à noite. Suponho que isso acontecia em parte porque nada mais tínhamos a fazer. Nosso templo localizava-se nas montanhas e dispúnhamos de pouquíssimos recursos. Não podíamos desperdiçar óleo com lamparinas para ler à noite, pois nosso óleo mal dava para as necessidades da cozinha. Ensinaram-nos a sentar na posição de lótus. A finalidade da meditação é acalmar a mente, assentando assim as distrações do pensamento iludido. À medida que isso acontece, uma consciência mais elevada começa a se manifestar.
Nos escritos budistas, a mente é por vezes comparada a um espelho-d’água, cuja natureza original é límpida e pura e só se turva quando o sedimento da ilusão é remexido em seu fundo. A meditação é vista como uma forma de deixar o sedimento assentar e, quando isso ocorre, tudo se torna claro. Provavelmente, a maior lição que podemos aprender sentados em meditação é que a clareza mental também pode ser alcançada em qualquer situação. Ao dominar a técnica da meditação na posição sentada, começamos a ver que também é possível vivenciar profundos estados meditativos em pé, andando ou fazendo praticamente qualquer coisa.
A meditação é um elemento essencial da prática budista, mas não pensem que seja tudo no budismo. A verdade mais profunda que aprendi no templo chan do monastério Qi Xia Shan foi que a mente em meditação é a mente de todos os seres sencientes – e essa é a mente de todos os Budas. A meditação é uma porta; o que passa por essa porta é nossa compaixão pelos outros.
A principal razão que leva as pessoas a abandonar o budismo ou a não obter grande benefício com sua prática é não terem aprendido como adotar para si mesmos o equilíbrio adequado entre a experiência e a compreensão dos ensinamentos do Buda. Como consequência desse desequilíbrio, perdem o entusiasmo e concluem que o Darma não leva a nada. Ora, não é pleno o entendimento do Darma que se baseie só nas palavras ou apenas no funcionamento da mente. A finalidade da recitação e da meditação é mostrar que a percepção do Buda Shakyamuni é real. Quando temos essa experiência em meditação, ou quando isso nos inspira na recitação, nós nos renovamos e nos capacitamos a prosseguir no longo processo de introspecção e crescimento moral que é o caminho para a iluminação.
Se sentirem preguiça em seus estudos ou tédio com o Darma, encontrem um lugar adequado para meditar ou procurem uma oportunidade de fazer um retiro. A experiência será transformadora. Com a prática, os benefícios da meditação são rapidamente trazidos à mente. Com a prática, aprendemos a sentir o Buda interior quase sem precisar procurar.
Minha maior ambição sempre foi disseminar o Darma por meio de textos: apenas a palavra escrita sobre vive ao tempo. Aprendi o Darma principalmente em escritos de outros e sinto que meu dever é tentar transmiti-lo de forma adequada. As verdades contidas no Darma transcendem as palavras; apesar disso, a linguagem é o meio utilizado para se transmitirem essas verdades. Espero que os leitores deste pequeno livro apreciem as palavras nele contidas, beneficiando-se da profunda sabedoria do Buda que originalmente as pronunciou.
Hsing Yün
Texto originalmente publicado no prefácio do livro
Budismo Significados Profundos, Escrituras Editora,
São Paulo, dezembro de 2011.